– Uma vez, quando eu era criança, não entendi por que
minha mãe mandou eu e minha irmã não sentarmos no colo de tios se eles pedisse.
Achei aquilo muito estranho, pois, na hora, pensei no meu tio favorito, que era
sempre um doce de gentileza e carinho. A questão era o outro tio.
“Eu não o via com maldade nem nada assim, afinal, ele era
o marido da minha tia e pai das minhas primas, era da família. Mas agora,
recordo que, sempre que ele chegava perto, eu me agarrava ao meu pai, em um
gesto de segurança, não deixando chance para que nenhum outro homem tocasse em
mim.
“Eu tive medo de homens, por muito tempo. Não conseguia
aguentar falar ao telefone com uma voz masculina, e torcia sempre para que o
atendente que estivesse disponível na minha vez, em qualquer loja que fosse,
fosse uma mulher. Eu percebi isso e tenteio me obrigar a não reagir perante os
gêneros, colocando em minha cabeça que todos eram pessoas, mas... devo te
confessar, que ainda prefiro ser atendida por mulheres.
– Desculpe a interrupção, mas estou um pouco confusa.
Você chegou aqui dizendo que queria falar sobre o espelho do seu quarto.
– Já vou chegar lá.
“Eu tenho um namorado, lindo, maravilhoso e atencioso. O
nome dele é Gustavo e, depois de seis meses juntos, ele quis fazer sexo.
“Quando Gustavo me beija, eu fico excitada como qualquer
outra pessoa ficaria. Eu sou apaixonada por ele e o quero cada vez mais perto
de mim. Seus olhos castanhos e cabelo preto são uma combinação perfeita na
minha opinião. Sem contar o sorriso em forma de coração, que faz com que eu me
derreta toda. Desculpe, estou sendo explícita demais?”
– Nunca. Este é um local no qual você deve se sentir
confortável e livre para falar do que te aflige e também do que te agrada. Se
quiser falar sobre o falo do Gustavo, não tem problema.
–
Falo?
– O...
– Ela apontou para a área entre as pernas.
– Ah,
entendi. Bom, enfim, continuando. Eu e Gustavo fomos até o meu quarto um dia,
quando eu estava me sentindo pronta (afinal, se fosse por ele, já teríamos
feito isso no primeiro mês, mas eu precisei de mais tempo e ele foi um perfeito
cavalheiro), e minha mãe tinha saído de casa e só ia voltar bem tarde. A
questão é que o Gustavo gosta de me ver e de se ver também. Não vejo problema
nisso, afinal, ele é lindo, eu olharia para ele o dia inteiro... desculpe,
estou perdendo o fio da meada, mas já vou voltar.
“Tenho
um espelho de corpo inteiro em um dos cantos do meu quarto, entre a
escrivaninha e a porta, e foi na frente dele que começamos a tirar as roupas. O
problema foi que, quando eu estava apenas com as roupas de baixo, Gustavo
decidiu acariciar as minhas coxas, pensando que iria me dar prazer, da mesma
forma que deu quando tocou minha nuca, pescoço e seios.
“Mas
aí aconteceu a enxurrada de memórias. Lembrei da mamãe falando sobre não sentar
no colo dos tios, e que as coxas eram o lugar favorito daquele nojento com quem
minha tia teve coragem de casar. Minha mente parou de ver o garoto por quem sou
apaixonada e começou a ver aquele olhar maldoso atrás de mim. O coração virou
algo medonho, uma mistura de Gato Listrado com Coringa, e eu comecei a ficar
rígida.
“Não
falei nada. Não sei se foi porque não queria estragar o momento para o meu
namorado ou porque fiquei sem reação mesmo. A questão é que ele eventualmente
tirou as mãos das minhas coxas e eu parei de ver aquela imagem horrível no
espelho, voltei ao momento presente e quase consegui sentir prazer.”
–
Então foi isso que aconteceu no espelho? – Ela perguntou.
– Sim,
mas não só isso. – Levantei a mão direita para que entendesse. – Vou continuar
de onde parei: Gustavo tirou toda a minha roupa e a dele também, o que até me
deixou um pouco animada, mas não excitada da forma que estava anteriormente,
enquanto nos beijávamos na sala.
“Meu
namorado me conduziu até a cama e se posicionou em cima de mim. Eu estava
confortável, estava pronta, mas não consegui.”
– Por
causa do que tinha visto no espelho?
–
Porque não conseguia tirar da mente a imagem do coração se esvaindo e dando
lugar àquela boca que me chamava de ‘pequena’ e achava graça o fato de uma
criança sentir muito sono. Ele me fazia sentir ameaçada, com suas palavras e
até com sua simples presença. Talvez seja por isso que eu não me atraia por
caras de olhos azuis. Os olhos do Gustavo são muito escuros, e eu amo isso
nele. Poderia mergulhar naquela imagem e me perder... mas realmente me perdi de
novo, deixe voltar ao espelho, porque coloquei a culpa no espelho!
“Lágrimas
começaram a escorrer pelo meu rosto e pedi desculpas ao meu namorado,
implorando para que saísse de cima de mim. Ele prontamente atendeu e perguntou
o que estava acontecendo. Fiquei com raiva. Não é justo! Não é justo que aquele
desgraçado possa estragar um momento que deveria ser bom, que deveria ser
lindo! Um momento meu e de quem eu amo. Por isso voltei à frente do espelho e
toquei minhas coxas. Senti um arrepio, não de prazer, mas de medo. Ouvi sua voz
me chamando de ‘pequena’ e agradeci mentalmente à minha mãe, que deve ter me
salvado de coisas horrorosas que passavam pela mente daquele homem. O vi mais
uma vez no espelho. Materializei-o e dei um soco em sua face. Achei que fosse
funcionar como um exorcismo de memórias, mas só serviu para quebrar o meu
metacarpo.
“Eu
disse ao Gustavo que não era nada, porque eu nem mesmo sentia dor, mas minha
mão estava em um ângulo estranho, e precisei ir ao hospital. Ele ajudou-me a
colocar as roupas e pediu um carro por aplicativo para a gente. Falei que não
era para tanto, mas foi aí que a adrenalina passou e minha mão começou a doer,
muito.
“Liguei
para minha mãe, falando que estaria no hospital, mas que estava acompanhada e
que ficaria tudo bem. O problema é que mães precisam saber das coisas, e o
Gustavo não hesitou em contar a história toda (tirando a parte em que quase
fizemos sexo, mas a do espelho foi contada e repetida várias vezes). Mamãe
achou muito estranho, pois eu não lhe contei o motivo daquilo. Não contei nem
para o Gustavo. Não tive coragem! E é por isso que estou aqui, por causa
daquele maldito espelho.”
–
Entendi.
Conversamos
muito, e saí da sessão com um peso a menos, mas ainda não me sentindo pronta,
sem conseguir tirar a imagem daqueles olhos azuis e sorriso sórdido da mente.
Minha
mãe foi me buscar no consultório, pois eu não poderia dirigir em função da mão
quebrada. Quando entrei no carro, ela já veio perguntando:
– Como
foi?
Igualzinho
à mensagem que recebi do Gustavo. Os dois estavam preocupados, não pude deixar
de achar gentil e sentir o amor que me rodeia, mas ainda com medo e confusão.
Chegando
em casa, fui até meu quarto. Passei pelo espelho, olhei-o com raiva.
Eu só
estava vendo a mim, só tinha eu ali. Por que aquele objeto fora capaz de fazer
com que eu me machucasse?
Balancei
a cabeça, espantando os pensamentos. Joguei-me na cama e peguei um livro para
ler.
– Boa noite. – Disse mamãe ao
passar pelo meu quarto por volta das dez horas.
– Boa noite. – Respondi e fechei os olhos, coberta e
sentindo-me confortável.
O problema foi que não consegui adormecer, sempre
lembrando do murro graças à dor que vinha de minha mão.
“Que desgraça.” Foi o que pensei.
Depois de mais ou menos meia hora de indignação por não
ser tomada pelo sono, levantei-me e fiquei de pé em frente ao espelho.
– O que foi, hein? – Perguntei, baixinho. – O que eu fiz
pra você?
Esfreguei meu rosto e deixei que os braços caíssem com
força para as laterais do corpo. Um deles balançou e tocou uma coxa. Foi por
fora, mas foi o suficiente. Ouvi a palavra ‘pequena’ ecoando em minha mente, e
os olhos azuis e sorriso sórdido surgiram.
Decidi fortalecer-me, impulsionada pela raiva, cansada de
sentir medo (assim como tinha feito com a repulsa aos homens em geral), e
repeti as palavras da sessão, alterando meu olhar entre aquela imagem que tinha
recebido meu murro e eu mesma:
– Não é justo! Eu não tenho culpa.
Falei várias vezes, como em uma intervenção, e coroei
com:
– O que você fez foi errado, e eu não carrego mais esse
fardo.
A imagem sumiu.
Consegui fazer amor com
Gustavo depois de mais ou menos um mês, e foi incrível, até quando ele tocou em
minhas coxas.
Ainda prefiro ser atendida por mulheres, mas consigo
interagir com homens normalmente.
E, o mais importante, consigo passar pelo meu espelho e
me admirar, como a mulher que me tornei. Não sou mais aquela criança indefesa
que se agarrava ao papai para se sentir mais segura. Sou uma mulher. Sou forte
e responsável pelas minhas decisões. Eu decido quem toca em mim! E a minha
decisão é que seja somente quem me ama e vai me dar prazer, não medo, não
rigidez.
Aprendi que ainda tenho muito mais para aprender e
resolver na terapia. O autoconhecimento não acaba, e tenho me sentido muito bem
com o tratamento, o qual quero continuar, mas a questão do espelho, que me
levou até o consultório, pode até ser arquivada. Eu me vejo e me adoro, meu
reflexo é meu amigo.
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